30 Jun Visão – Base de dados das Finanças Sob Suspeita
Inspectores Tributários desconfiam do sistema informático que regista todos os movimentos de um processo-crime. Alguns deixaram de introduzir informações sobre os casos em curso. Finanças garantem segurança no SINQUER.
Um número de contribuinte e um clique. É tudo quanto bastará para quem tem acesso total ao SINQUER (Sistema de Inquéritos Criminais e Fiscais) da Autoridade Tributária (AT) saber quem está a ser investigado e quais as diligências (buscas, vigilâncias, escutas, etc) efetuadas e em curso no respetivo processo. A dúvida que muitos inspetores tributários já colocaram, mas para qual ainda não obtiveram resposta, reside, precisamente, no “quem” é que, afinal, pode aceder a todo o conteúdo da plataforma informática que faz a gestão dos inquéritos criminais, uma vez que os próprios são abrigadas a registar todas as diligências. Suspeitando-se que, além dos funcionários de investigação criminal, vários quadros intermédios, como diretores regionais e a própria direção da AT têm permissões, conseguindo, desta forma, aceder à informação dos casos tutelados pelo Ministério Público.
Criado para agilizar a ligação entre o MP e a AT nas investigações de crimes fiscais, o SINQUER foi uma ferramenta desenvolvida numa primeira fase, em 2002, quando as Finanças também foram equiparadas a “Órgão de Policia Criminal” e depois alargada ao próprio MP. Em resumo, trata-se de um programa que regista todas as diligências efetuadas num processo-crime e que fica à disposição dos inspetores tributários e do procurador responsável pela investigação para uma melhor gestão do inquérito. Porém como referiu à VISÃO um inspetor tributário, a plataforma informática nasceu “ainda numa época que a Autoridade Tributária não tinha uma presença tão assídua em grandes investigações, tratando apenas de casos de abusos de confiança fiscal e fraudes ao IVA”. Desde 2005, contudo, e à boleia da Operação Furacão (processo que envolveu suspeitas de fraudes em IVA e IRC de milhões de euros promovidas por empresas com ligações estreitas ao maiores bancos), os elementos da investigação criminal da AT passaram a ter muitos casos em mãos e a trabalhar em conjunto com a Policia Judiciária, nas chamadas “equipas mistas”, consideradas até pela Procuradoria-Geral da República, no último relatório sobre a implementação da Lei de Política Criminal (2017-2019), como um “modelo de investigação que deveria ser objeto de maior utilização”.
Com as dúvidas instaladas sobre as permissões de acesso ao SINQUER, dois inspetores tributários contatados pela VISÃO admitiram que passaram a não registar algumas diligências em curso “sobretudo para salvaguarda da investigação”, o que até os pode prejudicar no âmbito do SIADAP (Sistema Integrado de Avaliação e Desempenho da Administração Pública), já que também são avaliados pelo cumprimento dessa tarefa. Entretanto, segundo informações recolhidas, uma equipa da Inspeção-Geral de Finanças iniciou uma auditoria ao SINQUER.
O problema, segundo fontes ouvidas pela VISÃO, é que o sistema não fica disponível através do critério da “necessidade de saber”, tal como acontece no Sistema de Informação Criminal da Policia Judiciária (SIC/PJ). Nesta plataforma, o acesso à informação é classificada por vários níveis, até ao quarto, o mais alto. “Por norma, os processos com escutas ou suspeitos expostos publicamente são classificados no nível mais alto. Isto acontece para que só os titulares do processo tenham acesso à informação completa”, explicou à VISÃO um inspetor da Judiciária.
Na plataforma informática da PJ, aliás, os suspeitos sob escuta telefónica não estão identificados pelo nome, mas sim pela expressão “Alvo” ou respetivo numero ou ainda através de um código gerado automaticamente pelo sistema de interceções telefónicas, o Paragon. Já no SINQUER é possível associar uma pessoa concreta a uma interceção em curso ou saber se, por exemplo, esta a ser alvo de vigilâncias, como revela a imagem recolhida do sistema e fornecida à VISÃO.
Há casos em que a própria direção nacional da Judiciária não sabe o conteúdo dos processos, uma vez que os coordenadores de investigação criminal e os inspetores apenas despacham com o Ministério Público.
“ Por algum motivo, e apesar de estarem a ser investigados pelas Finanças, os processos do BPN, Operação Furacão, Monte Branco e Operação Marquês nunca foram registados no SINQUER”, afirmou, por sua vez, à VISÃO outra fonte da Autoridade Tributária, referindo-se aos inquéritos que foram conduzidos pelo procurador Rosário Teixeira, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), com uma equipa da Direção de Finanças de Braga, liderada pelo inspetor tributário Paulo Silva.
GOVERNO GARANTE SEGURANÇA
Questionada pela VISÃO, a Autoridade Tributária afastou qualquer falha de segurança no SINQUER, garantindo que “o acesso a esta aplicação é exclusivo dos profissionais que desempenham funções na área de investigação criminal e os mesmos só podem aceder aos seus próprios processos”. Na mesma resposta, as Finanças declararam ainda não ser “permitido o acesso a processos utilizando como critério de pesquisa o número de contribuinte (NIF), estando o segredo de justiça devidamente salvaguardado”.
A Autoridade Tributária não confirmou a realização de uma auditoria ao SINQUER, referindo, genericamente, que o seu departamento de auditoria interna realiza “auditorias regulares ao exercício das atribuições da instituição e ao funcionamento dos seus serviços, bem como ao desempenho das suas aplicações informáticas, tendo como principal objetivo a identificação de eventuais constrangimentos e a consequente formulação de recomendações que contribuam para a sua melhoria”.
BUROCRACIA E FALTA DE MEIOS
Mas, se no caso da investigação subsistem muitas dúvidas, no quotidiano dos funcionários da AT, como confirmou à VISÃO Gonçalo Rodrigues, membro da direção do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), impera um “clima de medo”. Motivo: os acessos ao sistema. É que, após a polémica da Lista VIP de contribuintes – programa informático que protegia o acesso a dados fiscais de várias figuras do Estado, como o então Presidente da República, Cavaco Silva, e o antigo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, entre outros – a, Autoridade Tributária tem apertado cada vez mais a malha às pesquisas no sistema, abrindo sucessivos processos disciplinares quando não existe uma existe uma justificação para determinada consulta. Ainda numa recente conferência promovida, em Braga, pelo STI, Carlos Lobos, antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais considerou atualmente a AT está demasiado burocratizada e que a “forma vence a materialidade” quando, na sua opinião, os funcionários das Finanças deveriam, isso sim, ter mais liberdade, mas, ao mesmo tempo, uma maior responsabilidade.
Gonçalo Rodrigues recorre a uma situação fictícia para ilustrar o que, segundo a direção do STI, é atual situação: “Se eu estiver em Portalegre a analisar a faturação de uma vacaria e tiver um colega em Lisboa, com experiência nestes caos e lhe pedir uma opinião, caso ele entre no sistema para analisar, fica sinalizado, porque não tem justificação”. O sindicato, declara Gonçalo Rodrigues, tem alertado a Diretora-Geral da Autoridade Tributária para a “paralisação” dos serviços, fruto do receio de muitos funcionários. Acresce que alguns deles até já enfrentaram processos-crime por “acesso indevido” ao abrigo da Lei do Cibercrime. “Uma das advogadas do sindicato não tem feito outra coisa senão representar trabalhadores em processos disciplinares desta natureza” afiançou.
Já uma fonte da Associação Sindical dos Profissionais da Inspeção Tributária e Aduaneira (APIT) adiantou não ter recebido qualquer queixa por parte de um associado quanto ao funcionamento e acesso ao SINQUER. Por outro lado, a mesma fonte alertou para o esvaziamento da Inspeção Tributária, cujos quadro estão a ser desviados para serviços de atendimento presencial e telefónico por falta de funcionários na Autoridade Tributária e Aduaneira.
DESPACHO POLÉMICO
Diretor do DCIAP obrigado a intervir
Foi no final de 2021 que um despacho da subdiretora-geral da Autoridade Tributária ia provocando uma crise com o Ministério Público. Numa instrução de serviço interna, Ana Paula Neto fez depender a autorização para elementos da AT integrarem equipas mistas com a Policia Judiciaria de ter conhecimento dos “indícios concretos” dos casos que estavam a investigar. A situação levou a que o próprio diretor do Departamento Central de investigação e Ação Penal, o procurador Albano Pinto, interviesse junto da diretora-geral dos impostos, Helena Borges, no sentido de que a responsável máxima da AT clarificasse a “instrução interna”. Helena Borges terá, segundo informações recolhidas pela VISÃO, garantido que a direção da AT não pretende saber o que é que o MP estava a investigar, mas apenas proceder a uma melhor gestão dos quadros disponíveis na área de investigação criminal.



