15 Set Público – Reformas Estruturais – o caso particular da Autoridade Tributária e Aduaneira

A expressão “reformas estruturais” é usada há décadas no nosso país. Já todos sabemos que D. Sebastião as tinha na mala de viagem permanecendo com ele até aos nossos dias.
A expressão pode ser entendida de vários modos. Abrangente, em que a reforma visa mudar o meio envolvente de toda, ou grande parte, da actividade económica, para as empresas e para as famílias, ou pode ser vista de forma mais sectorial.
O Banco Central Europeu, na sua definição de reformas estruturais, considera que também são “reformas que aumentam o acesso à educação ou reduzem a evasão fiscal e a corrupção, e contribuem para apoiar o crescimento económico, promovendo ao mesmo tempo a justiça social”.
Em Portugal, queremos mais médicos, mais policias, mais exército, mais professores e, de um modo geral, mais de tudo aquilo que nos dá jeito, mas pagar impostos não ! Tornou-se um desbloqueador de conversa dizer mal do fisco.
Em Portugal, queremos mais médicos, mais polícias, mais exército, mais professores e, de um modo geral, mais de tudo aquilo que nos dá jeito, mas pagar impostos, isso é que não!
Tornou-se um desbloqueador de conversa dizer mal do fisco
Todos queremos pagar menos impostos. Há, no entanto, que ter em conta que para se atingir esse objectivo o Estado tem de gastar menos ou cobrar mais. Pode ser mais fácil se todos pagarmos a nossa parte, pois dividido, será globalmente menos pesado. A maneira mais fácil de baixar impostos é colocar cada um a pagar os que deve.
São as classes mais desfavorecidas quem mais sofre com a fuga aos impostos.
Ao longo dos últimos anos, começando algures no Governo de José Sócrates com o aparecimento da Lei 12A/2008, teve início um processo de descredibilização da Inspecção Tributária, a qual se considerou que não estaria integrada na alínea f), do artigo 10.º. Ou seja, era uma inspecção, mas não era como as outras, função nuclear do Estado.
Depois o triste episódio da Lista VIP, no governo do PàF, e por acção ou omissão de todos os partidos, da esquerda à direita, lá se foi criando a narrativa que os inspectores do fisco são uns coscuvilheiros que é preciso travar.
Chegou-se ao ponto de um partido envergonhar a autoridade tributária e aduaneira apelidando-a de autoridade extorsionária, e nem o Presidente da República, nem o primeiro-ministro, nem a própria directora-geral se insurgiram contra tal brincadeira de mau gosto.
Se há dirigentes que defendem as suas organizações e a sua autoridade, na AT, nada foi feito. Ao contrário, gastaram-se milhões a “atar as mãos” aos inspectores, de modo a transformá-los em “burros com palas”. É meter-lhes um fardo de palha à frente e eles que não ousem olhar para o lado, mesmo que, de todos os lados, lhes chegue o cheiro a erva fresca.
Depois o triste episódio da Lista VIP, no governo do PàF, e por acção ou omissão de todos os partidos, da esquerda à direita, lá se foi criando a narrativa que os inspectores do fisco são uns coscuvilheiros que é preciso travar
Culminou tudo isto com a colocação fora da área da inspecção da maioria dos inspectores tributários e aduaneiros!
A inspecção corrige, há vários anos, um valor que ronda os 1,5 mil milhões por ano. Apreende droga e combate outro tipo de criminalidade aduaneira.
Em 2015, foram colocados mais 1000 inspectores por exigência da troika. Um aumento de 30% nos RH deveria ter resultado numa melhoria no combate à fraude e evasão fiscal. Mas basta ler os relatórios do combate a fraude e evasão fiscais e aduaneiras de 2015 (ano do reforço de recursos humanos) até 2021, para perceber que isso não sucedeu.
A justiça fiscal é cada vez menor. No passado, pelo menos aos olhos e na presença de um inspector, as pessoas cumpriam. Hoje, podem dizer que têm cinco apartamentos arrendados e recebem tudo em notas para não declarar nada, porque sabem que se o inspector fizer alguma coisa ainda se arrisca a ter um processo disciplinar por acesso indevido à base de dados da AT. É o total descrédito duma autoridade que lida com a área mais sensível da relação do Estado com as famílias e as empresas.
Menos justiça fiscal corresponde a menos justiça social e assim a aparente estagnação dos resultados da inspecção tributária é no fundo um retrocesso. Com um reforço de recursos humanos a ITA faz um pior trabalho.
A centralização em Lisboa de competências que, historicamente, de forma efi ciente, estiveram nas mãos dos directores distritais de finanças também não tem ajudado.
Veja-se o processo de desmaterialização da inspecção tributária que, a coberto das boas intenções da modernização do procedimento, visa sobretudo o total controlo dos serviços centrais sobre a actividade da inspecção, o que se tem mostrado totalmente inadequado a um eficaz combate à fraude e evasão fiscal.
Os distritos têm realidades muito diversas e ninguém melhor do que o dirigente intermédio para gerir esse processo. No fundo, é um pouco oque se passa entre municípios e governo central. Nos municípios, com muito menos faz-se muito mais, precisamente porque existe uma proximidade com a realidade das regiões.
A descentralização é um caminho necessário para uma maior eficiência e proximidade do decisor com o cidadão, mantendo os níveis de decisão estratificados e atentas as boas práticas anticorrupção, que a centralização de processos em Lisboa só prejudica.
Até ao nível da gestão financeira, as compras centralizadas têm provado ser menos eficientes que processos de menor dimensão realizados ao nível distrital ou regional. A centralização deste processo só levou a desperdícios e compras de material inútil, de má qualidade e que até danificou equipamentos da organização.
Actualmente a AT forma pilotos de caça F16 e depois coloca-os a fazer de porteiros e a atender o telefone
Uma reforma estrutural no fisco passa por duas grandes áreas. A primeira é a simplificação da legislação fiscal, de modo a reduzir a necessidade da prestação do serviço de apoio ao contribuinte, por parte da AT, onde o Estado investe a maior parte do dinheiro neste momento. A segunda é uma gestão coerente da organização.
Há muito a fazer do ponto de vista orgânico, nomeadamente dos serviços centrais, regionais e locais, mas também ao nível dos recursos humanos, nomeadamente na distribuição de tarefas. Actualmente a AT forma pilotos de caça F16 e depois coloca-os a fazer de porteiros e a atender o telefone. Se um dia entrarmos em guerra e quisermos que eles conduzam os caças, eles terão dificuldade pois só treinam a atender o telefone.
Centenas de inspectores e gestores tributários formados como tal, em processos formativos exigentes, estão, de facto, a atender telefone, no apoio ao contribuinte. Muitos outros estão noutras áreas do apoio. Outros ainda estão a desenvolver tarefas de menor complexidade que não exigem a presença de gestores ou inspectores.
A AT tem duas grandes áreas. O apoio às famílias e empresas, e o exercício dos poderes de autoridade do estado na área inspectiva, executiva e da justiça tributária e aduaneira. Estas, de modo nenhum se podem confundir. Têm especificidades próprias.
Num inquérito levado a cabo pelo Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, os próprios trabalhadores identificaram a necessidade de haver uma reforma na AT. Mas o que temos visto são remendos e pensos rápidos, que vão criando uma organização cada vez mais desorganizada e que não vai fazer bem nem uma coisa, nem outra.
Uma reforma exige que se perceba onde estamos, para onde queremos ir e quais os passos para lá chegar. Pode ser feita de forma tranquila es em confrontos com os trabalhadores, tendo em conta o elevadíssimo número de aposentações que haverá na AT, na próxima década.
É preciso perceber o que tem de estar efectivamente destinado às carreiras de inspecção, nomeadamente a área das execuções fiscais, da justiça tributária e da própria inspecção tributária e aduaneira, ou seja, o combate à fraude e evasão fiscal e criminalidade económica, que permita uma maior justiça social, e por outro lado, aquilo que eventualmente pode ser feito por carreiras gerais do Estado.
É preciso definir o modelo de presença territorial e o modo como pacificamente o vamos alcançar.
E é preciso vontade.