02 Out Vida Económica | Ana Gamboa: “Iliteracia fiscal é elevada”
Existe um desconhecimento generalizado do quadro legal e do funcionamento da AT em matéria de cumprimento das obrigações fiscais” – afirma Ana Gamboa. Em entrevista à “Vida Económica”, a presidente do STI – Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos considera que há contribuintes que não estão devidamente informados sobre quais as suas obrigações fiscais e como cumpri-las – quais as declarações que têm de fazer, de que forma, em que prazos, ou quais os benefícios fiscais que podem obter, de que forma e em que prazos, e isto leva a que não cumpram as obrigações dentro dos prazos legais ou não obtenham os benefícios a que têm direito, o que conduz a um nível de litigiosidade na forma de cobranças coercivas, coimas e reclamações.
Vida Económica – Que balanço faz da evolução recente dos recursos humanos na AT?
Ana Gamboa – O balanço é muito negativo, a média de idades ronda os 56 anos e nos últimos anos temos assistido à saída mensal de centenas de trabalhadores para a aposentação sem que vão entrando novos funcionários para rejuvenescer os quadros, a tempo de existir a transmissão de conhecimento intergeracional. A geração que entrou na AT nos anos 80, e que tem muito conhecimento acumulado, está a chegar ao final da vida ativa. Andamos há muito tempo a alertar para este problema, que podia e devia ter sido antecipado. O recrutamento plurianual de trabalhadores que se está a tentar implementar agora, devia ter começado antes de termos chegado ao “abismo” em que nos encontramos de momento e que tem sujeitado os trabalhadores no ativo a uma pressão continuada, pois aumenta o volume de trabalho per capita e aumentam também os reportes de situações de doença, burnout, e outras situações graves, o que se torna ainda mais crítico por não existirem Serviços de Medicina no Trabalho.VE – Há reflexos negativos no atendimento?
AG – Do ponto de vista da qualidade do serviço que prestamos aos portugueses, a rutura nos quadros de pessoal da AT diminui a capacidade e a rapidez na resposta em áreas como o atendimento e a tramitação processual. Os dirigentes acabam por tomar medidas de “remendo”, afetando trabalhadores dumas áreas para reforçar outras, gerando falhas em áreas cruciais para o eficaz cumprimento da missão da AT, como é o caso da falta de trabalhadores nas equipas de controlo aduaneiro, nos portos e aeroportos, criando um risco maior de aumento do tráfico ilícito e o caso da falta de inspetores tributários no terreno – mais de 2/3 dos inspetores estão afetos a outras áreas – colocando em causa a investigação e o combate à economia paralela, à fraude e evasão fiscal e aduaneira.
A formação profissional tem vindo também a diminuir e neste setor é fundamental, pois não é suficiente o esforço individual de atualização contínua, é preciso que haja capacidade do Centro de Formação proporcionar a todos os trabalhadores formação de qualidade e isso não tem acontecido, apesar de termos na AT os melhores formadores em matéria de fiscalidade, não há um investimento para se capacitar a AT com o Centro de Formação que é necessário para dar a resposta de qualidade que se impõe.VE – Na progressão de carreiras a antiguidade deve ser cada vez menos um posto e haver maior valorização do mérito individual?
AG – O mérito individual deve ser sempre valorizado, embora no caso da AT, o trabalho em equipa seja fundamental para o bom cumprimento dos objetivos, e o atual sistema de avaliação de desempenho (SIADAP) que conta com uma quota limitada de atribuição de desempenho excelente ou relevante é algo a que nos opomos veementemente, precisamente por promover a competitividade, gerar injustiças e corroer o espírito de equipa. Por outro lado, parece-nos incoerente querer uma Administração Pública de excelência e alta qualidade dos serviços e depois limitar a 5% o número de trabalhadores que podem ser avaliados como excelentes. O mérito individual deve com certeza ser valorizado, mas também incentivado e estimulado, criando condições que motivem os trabalhadores a quererem ser excelentes na sua função, o que passa, também, por valorizar as carreiras a nível salarial e dar expectativa de progressão, a todos os trabalhadores e não apenas a alguns.
A antiguidade só por si não deve ser um posto, mas no caso da AT, a antiguidade dos trabalhadores significa muitas vezes conhecimento e experiência acumulados, que devem a nosso ver ser reconhecidos e valorizados e em muitos casos não o são.VE – Se diminuir o elevado nível de litigiosidade entre a AT e os contribuintes haverá reflexos positivos no funcionamento dos serviços?
AG – Tudo é possível, desde que haja vontade e compromisso para obter os resultados desejados e a afetação dos recursos necessários. A litigiosidade entre os contribuintes e a AT deve-se a vários fatores, alguns que passam por soluções de âmbito mais organizacional e outros que podem passar por soluções de âmbito mais político e legislativo.
Por um lado, a iliteracia fiscal é elevada, existe um desconhecimento generalizado do quadro legal e do funcionamento da AT em matéria de cumprimento das obrigações fiscais, isto é, há contribuintes que não estão devidamente informados sobre quais as suas obrigações ficais e como cumpri-las – quais as declarações que têm que fazer, de que forma, em que prazos, ou quais os benefícios fiscais que podem obter, de que forma e em que prazos, e isto leva a que não cumpram as obrigações dentro dos prazos legais ou não obtenham os benefícios a que têm direito, o que conduz a um nível de litigiosidade na forma de cobranças coercivas, coimas, reclamações, etc. Por outro lado, existe a litigiosidade gerada por um conhecimento do sistema fiscal e a tentativa de contornar as normas ou deliberadamente não as cumprir com o objetivo de não pagar impostos, pagar menos ou obter benefícios fiscais indevidamente e aqui estamos a lidar com condutas conscientes e eventualmente criminosas, que geram outro nível de litigiosidade.
O primeiro nível de conflitualidade pode ser reduzido com um maior investimento na literacia fiscal e isto pode passar por introduzir este tema nos programas escolares, por exemplo, mas também se pode reduzir esta conflitualidade com o esforço por parte da tutela e da AT, no sentido de melhorar a gestão tributária e aduaneira, simplificando a forma de cumprir as obrigações e melhorar o apoio ao cumprimento voluntário, através dos vários canais de comunicação e atendimento que a AT faculta. A nosso ver, tem havido um investimento grande nesta vertente nos últimos anos, com o desenvolvimento de sistemas de automatização de declarações, tentativas de melhorar o Portal das Finanças e o reforço do Centro de Atendimento Telefónico, por exemplo. Tem-se investido nesta área, mas há um caminho ainda longo por percorrer, nomeadamente ao nível da organização interna dos serviços e dos recursos humanos, que são cada vez menos, com idades mais elevadas e trabalham sob uma enorme pressão para alcançar os objetivos exigidos.
O segundo nível de litigiosidade pode ser diminuído através dum maior investimento na inspeção e auditoria tributária e aduaneira e isso passa por afetar mais recursos a esta área, quer humanos quer materiais. Como já vimos, neste momento, em todo o país, dos cerca de 3000 profissionais que a AT preparou para esta área, apenas temos afetos ao combate direto à fraude e à evasão fiscais, cerca de 900, além de que muitas vezes estes profissionais não têm os recursos necessários, como equipamentos funcionais, pagamento das ajudas de custo e transporte a valores compatíveis com o aumento do custo do combustível e das refeições, nem o reforço necessário dos poderes de autoridade, para que possam desenvolver o seu trabalho devidamente protegidos e compensados pelo risco a que estão sujeitos para desenvolverem esta missão.
Há um outro fator, cuja solução é de âmbito mais político e legislativo, que passa por simplificar o sistema fiscal e diminuir a carga fiscal. A perceção generalizada do contribuinte médio é de que, por um lado o sistema fiscal é complexo e, por outro, a carga fiscal é muito elevada e esses podem ser também fatores dissuasores do cumprimento. É um facto o que o país precisa da receita fiscal para funcionar, mas, de acordo com estudos recentes, a economia paralela ronda os 35% do PIB, representando milhares de milhões de euros que não são tributados. Isto pode ser combatido com um maior investimento no combate à evasão fiscal, mas a simplificação do sistema fiscal e a diminuição da carga fiscal podem ser também fatores que ajudem a tornar a economia registada mais apelativa.VE – Um dos problemas mais graves da AT resulta da má qualidade das normas fiscais e da instabilidade do quadro legal?
AG – No que toca à AT em si, enquanto organismo que liquida e arrecada a receita fiscal, a complexidade das normas fiscais não é de todo o seu problema mais grave, pois conta com profissionais que têm uma preparação técnica específica e uma atualização contínua, que os habilita a lidar com a complexidade do sistema legislativo. Há um esforço associado a isto, mas é algo que não consideramos um problema grave. Problema grave é, isso sim, a falta de reconhecimento desse esforço e a falta de uma política de motivação dos recursos humanos, que se traduza na devida compensação, em termos salariais e de perspetiva de evolução na carreira.
Posto isto, parece-nos que a má qualidade das normas fiscais e a instabilidade do quadro legal é sobretudo um problema do país que, tal como referi, conta com uma iliteracia fiscal e índices de incumprimento elevados e esta instabilidade legal agrava a situação.
Ana Gamboa – O balanço é muito negativo, a média de idades ronda os 56 anos e nos últimos anos temos assistido à saída mensal de centenas de trabalhadores para a aposentação sem que vão entrando novos funcionários para rejuvenescer os quadros, a tempo de existir a transmissão de conhecimento intergeracional. A geração que entrou na AT nos anos 80, e que tem muito conhecimento acumulado, está a chegar ao final da vida ativa. Andamos há muito tempo a alertar para este problema, que podia e devia ter sido antecipado. O recrutamento plurianual de trabalhadores que se está a tentar implementar agora, devia ter começado antes de termos chegado ao “abismo” em que nos encontramos de momento e que tem sujeitado os trabalhadores no ativo a uma pressão continuada, pois aumenta o volume de trabalho per capita e aumentam também os reportes de situações de doença, burnout, e outras situações graves, o que se torna ainda mais crítico por não existirem Serviços de Medicina no Trabalho.VE – Há reflexos negativos no atendimento?
AG – Do ponto de vista da qualidade do serviço que prestamos aos portugueses, a rutura nos quadros de pessoal da AT diminui a capacidade e a rapidez na resposta em áreas como o atendimento e a tramitação processual. Os dirigentes acabam por tomar medidas de “remendo”, afetando trabalhadores dumas áreas para reforçar outras, gerando falhas em áreas cruciais para o eficaz cumprimento da missão da AT, como é o caso da falta de trabalhadores nas equipas de controlo aduaneiro, nos portos e aeroportos, criando um risco maior de aumento do tráfico ilícito e o caso da falta de inspetores tributários no terreno – mais de 2/3 dos inspetores estão afetos a outras áreas – colocando em causa a investigação e o combate à economia paralela, à fraude e evasão fiscal e aduaneira.
A formação profissional tem vindo também a diminuir e neste setor é fundamental, pois não é suficiente o esforço individual de atualização contínua, é preciso que haja capacidade do Centro de Formação proporcionar a todos os trabalhadores formação de qualidade e isso não tem acontecido, apesar de termos na AT os melhores formadores em matéria de fiscalidade, não há um investimento para se capacitar a AT com o Centro de Formação que é necessário para dar a resposta de qualidade que se impõe.VE – Na progressão de carreiras a antiguidade deve ser cada vez menos um posto e haver maior valorização do mérito individual?
AG – O mérito individual deve ser sempre valorizado, embora no caso da AT, o trabalho em equipa seja fundamental para o bom cumprimento dos objetivos, e o atual sistema de avaliação de desempenho (SIADAP) que conta com uma quota limitada de atribuição de desempenho excelente ou relevante é algo a que nos opomos veementemente, precisamente por promover a competitividade, gerar injustiças e corroer o espírito de equipa. Por outro lado, parece-nos incoerente querer uma Administração Pública de excelência e alta qualidade dos serviços e depois limitar a 5% o número de trabalhadores que podem ser avaliados como excelentes. O mérito individual deve com certeza ser valorizado, mas também incentivado e estimulado, criando condições que motivem os trabalhadores a quererem ser excelentes na sua função, o que passa, também, por valorizar as carreiras a nível salarial e dar expectativa de progressão, a todos os trabalhadores e não apenas a alguns.
A antiguidade só por si não deve ser um posto, mas no caso da AT, a antiguidade dos trabalhadores significa muitas vezes conhecimento e experiência acumulados, que devem a nosso ver ser reconhecidos e valorizados e em muitos casos não o são.VE – Se diminuir o elevado nível de litigiosidade entre a AT e os contribuintes haverá reflexos positivos no funcionamento dos serviços?
AG – Tudo é possível, desde que haja vontade e compromisso para obter os resultados desejados e a afetação dos recursos necessários. A litigiosidade entre os contribuintes e a AT deve-se a vários fatores, alguns que passam por soluções de âmbito mais organizacional e outros que podem passar por soluções de âmbito mais político e legislativo.
Por um lado, a iliteracia fiscal é elevada, existe um desconhecimento generalizado do quadro legal e do funcionamento da AT em matéria de cumprimento das obrigações fiscais, isto é, há contribuintes que não estão devidamente informados sobre quais as suas obrigações ficais e como cumpri-las – quais as declarações que têm que fazer, de que forma, em que prazos, ou quais os benefícios fiscais que podem obter, de que forma e em que prazos, e isto leva a que não cumpram as obrigações dentro dos prazos legais ou não obtenham os benefícios a que têm direito, o que conduz a um nível de litigiosidade na forma de cobranças coercivas, coimas, reclamações, etc. Por outro lado, existe a litigiosidade gerada por um conhecimento do sistema fiscal e a tentativa de contornar as normas ou deliberadamente não as cumprir com o objetivo de não pagar impostos, pagar menos ou obter benefícios fiscais indevidamente e aqui estamos a lidar com condutas conscientes e eventualmente criminosas, que geram outro nível de litigiosidade.
O primeiro nível de conflitualidade pode ser reduzido com um maior investimento na literacia fiscal e isto pode passar por introduzir este tema nos programas escolares, por exemplo, mas também se pode reduzir esta conflitualidade com o esforço por parte da tutela e da AT, no sentido de melhorar a gestão tributária e aduaneira, simplificando a forma de cumprir as obrigações e melhorar o apoio ao cumprimento voluntário, através dos vários canais de comunicação e atendimento que a AT faculta. A nosso ver, tem havido um investimento grande nesta vertente nos últimos anos, com o desenvolvimento de sistemas de automatização de declarações, tentativas de melhorar o Portal das Finanças e o reforço do Centro de Atendimento Telefónico, por exemplo. Tem-se investido nesta área, mas há um caminho ainda longo por percorrer, nomeadamente ao nível da organização interna dos serviços e dos recursos humanos, que são cada vez menos, com idades mais elevadas e trabalham sob uma enorme pressão para alcançar os objetivos exigidos.
O segundo nível de litigiosidade pode ser diminuído através dum maior investimento na inspeção e auditoria tributária e aduaneira e isso passa por afetar mais recursos a esta área, quer humanos quer materiais. Como já vimos, neste momento, em todo o país, dos cerca de 3000 profissionais que a AT preparou para esta área, apenas temos afetos ao combate direto à fraude e à evasão fiscais, cerca de 900, além de que muitas vezes estes profissionais não têm os recursos necessários, como equipamentos funcionais, pagamento das ajudas de custo e transporte a valores compatíveis com o aumento do custo do combustível e das refeições, nem o reforço necessário dos poderes de autoridade, para que possam desenvolver o seu trabalho devidamente protegidos e compensados pelo risco a que estão sujeitos para desenvolverem esta missão.
Há um outro fator, cuja solução é de âmbito mais político e legislativo, que passa por simplificar o sistema fiscal e diminuir a carga fiscal. A perceção generalizada do contribuinte médio é de que, por um lado o sistema fiscal é complexo e, por outro, a carga fiscal é muito elevada e esses podem ser também fatores dissuasores do cumprimento. É um facto o que o país precisa da receita fiscal para funcionar, mas, de acordo com estudos recentes, a economia paralela ronda os 35% do PIB, representando milhares de milhões de euros que não são tributados. Isto pode ser combatido com um maior investimento no combate à evasão fiscal, mas a simplificação do sistema fiscal e a diminuição da carga fiscal podem ser também fatores que ajudem a tornar a economia registada mais apelativa.VE – Um dos problemas mais graves da AT resulta da má qualidade das normas fiscais e da instabilidade do quadro legal?
AG – No que toca à AT em si, enquanto organismo que liquida e arrecada a receita fiscal, a complexidade das normas fiscais não é de todo o seu problema mais grave, pois conta com profissionais que têm uma preparação técnica específica e uma atualização contínua, que os habilita a lidar com a complexidade do sistema legislativo. Há um esforço associado a isto, mas é algo que não consideramos um problema grave. Problema grave é, isso sim, a falta de reconhecimento desse esforço e a falta de uma política de motivação dos recursos humanos, que se traduza na devida compensação, em termos salariais e de perspetiva de evolução na carreira.
Posto isto, parece-nos que a má qualidade das normas fiscais e a instabilidade do quadro legal é sobretudo um problema do país que, tal como referi, conta com uma iliteracia fiscal e índices de incumprimento elevados e esta instabilidade legal agrava a situação.