PÚBLICO | “Ao sol e à chuva, a luta continua” no fisco

“Ao sol e à chuva, a luta continua” no fisco
Delegados e dirigentes sindicais dos trabalhadores da autoridade tributária manifestaram-se em frente ao Ministério das Finanças para exigir “respeito”. Em Dezembro há greve.

De repente começou a chover. As bandeiras brancas, preenchidas com o logótipo azul do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), estiveram no ar durante mais de uma hora. Quando os fios de água começam a cair do céu, recolhem-se e rapidamente servem para tapar algumas cabeças.

Já é quase meio-dia. A concentração de dirigentes e delegados sindicais dos trabalhadores da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), promovida pelo STI em frente ao Ministério das Finanças, em Lisboa, está a chegar ao fim. Já se ouvira um clássico de Sérgio Godinho a sair de uma coluna de som, O Primeiro Dia, interrompido várias vezes para se gritarem palavras de ordem ao microfone. E, por isso, em uníssono já se ouvira: “Assim não pode estar, os serviços a fechar! Assim não pode estar, os serviços a fechar!”
Com a intensidade da chuva, alguns manifestantes caminham até à parede do ministério para se protegerem sob o beiral do edifício amarelo. O sol regressaria poucos minutos depois e mesmo que a manifestação de 1h30 estivesse a terminar, os funcionários do fisco estavam unidos e prontos para continuar. Prometem que não vão parar até serem ouvidos pelo Governo sobre as suas reivindicações e até verem melhoradas as condições de trabalho.
O caderno reivindicativo do STI para o próximo ano inclui 18 pontos. Para preencher a concentração da manhã desta sexta-feira, o sindicato encostou dois cartazes a duas árvores do passeio da Avenida Infante D. Henrique. Num deles, lê-se em título: “Exigimos respeito.” Logo abaixo, estão elencadas quatro principais reivindicações: “Valorização das nossas funções de autoridade; reforço dos quatros de pessoal; perspectivas de carreira; condições para combater de forma eficaz a fraude e evasão fiscal, os tráficos ilícitos e garantir a segurança da fronteira externa da União Europeia.”
Entre os presentes ainda se alimentou a esperança de ver algum membro do Governo descer as escadas do ministério para falar com o presidente do STI, Gonçalo Rodrigues, mas isso não aconteceu.

Luís Ferraz, vice-presidente do sindicato, vai desfiando a lista de preocupações em conversa com o PÚBLICO. Apesar de ter mais de dez mil trabalhadores, a AT sofre de uma “carência enorme de recursos humanos”. A idade etária, diz, “é elevadíssima” (a média estava nos 55,2 anos em 2023), “não há rejuvenescimento de quadros e continua-se a pedir o mesmo que se pedia há 20 anos em termos de objectivos”. Por isso há descontentamento. “Não temos higiene e segurança no trabalho”, nota, contando que a ausência já obrigou os trabalhadores a avançarem com uma acção popular para exigir a regularização da situação.

A revisão de carreiras na função pública “não teve impacto nos trabalhadores” da AT. “Temos tabelas salariais que são inferiores às que havia em 1999.” E o regime de incompatibilidades que se aplica aos trabalhadores da AT, defende, deve “ser compensado de alguma forma.”

Anualmente, o STI organiza uma reunião de delegados sindicais e, este ano, aproveitando o encontro, o STI agendou esta concentração para acentuar publicamente o descontentamento, que, alega, é geral. “Quer a secretária de Estado da Administração Pública, quer a dos Assuntos Fiscais manifestaram uma disponibilidade [de negociação] que foi depois retirada. Por isso estamos na rua”, justifica Ferraz.

Reclamar melhores condições de trabalho significa exigi-las nos vários serviços da AT, dos centrais aos regionais. Essa é uma preocupação de Cristela Francisco, delegada sindical que representa os trabalhadores do serviço de Finanças de Alcobaça.

Aqui, o quadro de pessoal já foi de 40 pessoas, hoje está com menos de 30, e destes, entre chefias e restantes trabalhadores só há 15 vagas preenchidas, diz. Uma das questões que preocupam Cristela Francisco é a falta de acção na “contratação de pessoal”. Mesmo com a abertura de um concurso externo com 390 vagas (“soubemos ontem que iam esticar para 120”), o reforço não dá “sequer um trabalhador por cada serviço de finanças em todo o território continental e ilhas.”
“Portugal não tem uma literacia informática que permita que toda a gente possa ir ao e-balcão ou ao Portal das Finanças resolver as suas situações. Quem não percebe de Internet tem os seus direitos coarctados. Estamos completamente congestionados com pedidos e as nossas funções estão a mirrar por falta de pessoal”, afirma, enquanto faz um gesto com a mão para acentuar a ideia de encolhimento da AT. “Como é que um serviço local, de proximidade com o cidadão, pode funcionar quando não tem pessoas para corresponder a todas as solicitações? Isso é um grande braço-de-ferro entre o público que necessita do nosso auxílio e que depois não vê as suas pretensões satisfeitas”, frisa.
Esse sentimento está presente nos manifestantes. Cada trabalhador enverga uma t-shirt preta com palavras de descontentamento. Nalguns camisolas lê-se: “AT mirrada — economia paralela aumentada.” Os números oficiais confirmam que o número de quadros do fisco tem caído. Em 2023, tinha 10.134 trabalhadores em funções, quando 11 anos antes (2012, no momento em que foi criada com a fusão de várias direcções gerais) tinha mais 1694 funcionários. A quebra é de 14% e, só em relação a 2022, há uma diminuição de 3% (menos 354 trabalhadores).
Um efeito persuasivo
Leonel Frazão, inspector tributário na direcção de serviços de Leiria e dirigente do STI, considera ser preciso reestruturar à AT, porque “a casa está um pouco perdida em relação às funções de cada um.” As funções são tão distintas e tão dispersas que “estão a ser executadas por pessoas que não têm competência técnica”, alerta, referindo-se ao facto de haver funcionários das autarquias a serem chamados para a AT “sem formação” para prestar o serviço à população.
A este problema Frazão soma outro: estão a retirar técnicos da área da inspecção para cobrir a falta de pessoal nas repartições e para estarem no atendimento telefónico aos contribuintes para esclarecerem questões simples. “Não havendo inspecção na rua, há uma falta de respeito pelo Estado, pelos impostos, pela legalidade”, considera. “Todos os ministérios estão dependentes da nossa cobrança” e é importante que haja um “efeito persuasivo” sobre os comerciantes, sobre a indústria e outros sectores de actividade, através da presença da AT, para que não se cometam “ilegalidades” e para “afastar um sentimento de impunidade.”

Ana Machado, gestora tributária na Direcção de Finanças do Porto, dirigente do STI no Porto, trabalha há cerca de 40 anos na AT. Parece conhecer a “casa” como ninguém. Protesta contra as condições de trabalho nos serviços. “O Governo e a directora [Helena Borges] não estão ao lado dos funcionários. Somos insultados todos os dias e não temos uma palavra de um dirigente máximo da AT. Somos a classe que arrecada [boa parte da receita] do Orçamento.”

Tal como outros colegas, insiste que, “se não houver autoridade tributária, não há saúde, não há polícias, os hospitais não funcionam, os médicos e os professores não têm aumentos”.

Machado quer acentuar uma crítica particular ao ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, que já trabalhou na AT. “Como é que uma pessoa que já trabalhou na casa e tem obrigação de conhecer a casa como ninguém, [considera] que não somos uma prioridade? Queremos respeito; estamos cansados. Exigem-nos o cumprimento de objectivos e todos os anos esforçamo-nos para os superar; sabem que somos profissionais com brio e cumprimos.”

Este é uma espécie de primeiro dia, talvez explique a escolha de Sérgio Godinho. “Hoje vamos começar uma luta: vai-se prolongar até sermos ouvidos e até a nossa tabela salarial ser justa”, resume Ana Machado.

Enquanto termina este depoimento começa a chover. O colega que está ao microfone a animar os manifestantes não ouve a conversa, mas parece estar no mesmo comprimento de onda. Os pingos da chuva levam-no a improvisar um novo slogan: “Ao sol e à chuva, a luta continua! Ao sol e à chuva, a luta continua!”

Para 19 e 20 de Dezembro, o STI já tem uma greve agendada, com uma manifestação em Lisboa no primeiro dia da paralisação.

25.10.2024