25 Set Dinheiro Vivo| Ana Gamboa: “Autoridade Tributária está num ponto de rutura extrema ao nível dos recursos humanos”
Fisco precisa de, pelo menos, mais dois mil funcionários para manter a atual estrutura de funcionamento, diz a presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos. Tutela devia criar um grupo de trabalho para reorganizar a AT, propõe Ana Gamboa.
Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), que representa, segundo o próprio, 70% dos funcionários do Fisco, quer mais concursos externos – e mais céleres – para a entrada de trabalhadores na Autoridade Tributária (AT). O último concurso foi lançando no início do ano passado, mas só neste mês as 180 pessoas admitidas iniciaram o período experimental, sublinha Ana Gamboa. O STI estava à espera que o governo abrisse novo concurso este ano, mas até agora não passou de uma intenção.
O STI tem pedido uma uniformização do modelo de atendimento ao público nos serviços de Finanças. Em que ponto está a negociação?
Essas negociações já deram origem a um despacho da senhora diretora-geral, que estabelece que o atendimento espontâneo é feito nos serviços de Finanças durante a parte da manhã, e a parte da tarde está reservada aos atendimentos por marcação. Portanto, isto foi uma medida que nos foi proposta e que, de certa forma, conduz a uma certa uniformização, porque aquilo que se passa neste momento, ao nível não só dos serviços de Finanças, mas de todos os serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, é que estamos num ponto de rutura extrema ao nível dos recursos humanos. Não é possível fazer omeletes sem ovos e na Autoridade Tributária e Aduaneira, além do atendimento e todo o apoio que é necessário ser dado ao cumprimento das obrigações fiscais, há outras funções que os seus trabalhadores têm que desenvolver, nomeadamente a tramitação processual, porque não é só querermos ir às Finanças tratar de um determinado assunto, ele depois muitas vezes tem que estar sujeito à análise, e são os próprios trabalhadores que estão muitas vezes no atendimento que depois têm todo esse serviço de backoffice. Para não falar de todas as outras funções, nomeadamente ao nível do combate à fraude e à evasão fiscal, que é desenvolvido, sobretudo, pelos inspetores tributários e aduaneiros.
Neste momento, esse modelo de atendimento vigora em todos os serviços de Finanças do país?
Sim, e está em vigor desde o início do mês.
E o sindicato concorda com este novo modelo de atendimento, presencial de manhã e por marcação à tarde?
Não quisemos entrar muito na questão de o horário ser o melhor ou o pior, aquilo que nos pareceu que era muito importante uniformizar e tentar, de alguma forma, libertar a tensão que recai sobre os trabalhadores, porque ao que é que estávamos a assistir? Ao longo da pandemia saíram muitas pessoas para a aposentação, e quando houve o retorno ao atendimento presencial os serviços estavam altamente carenciados, houve regras que, de facto, davam a possibilidade de cada chefia escolher ou decidir a melhor forma de gerir o seu serviço, e depois tínhamos situações em que as portas do serviço estavam abertas e atendiam todas as pessoas de forma espontânea, outras situações, se calhar no serviço no concelho ao lado, onde o chefe entendia, “não senhor, aqui só vamos fazer atendimento por marcação”, e as pessoas não conseguiam ser atendidas. E isto pareceu-nos sempre que não era uma situação sustentável, portanto, alguma coisa tinha que ser feita. É óbvio que o problema que está por trás disto tudo é a própria organização dos serviços e a falta de pessoal, isto é um problema para o qual já vimos tentando alertar desde há muito, e que podia e devia ter sido antecipado e não foi.
Mas advogados, solicitadores, contabilistas, têm-se queixado que os tempos de espera sobrepõem-se e não facilitam a vida laboral desses profissionais. Os tempos de espera são demasiado elevados?
Sentimos, sobretudo, que não conseguimos dar a resposta que é necessária, porque não há recursos e os serviços não estão organizados. Eventualmente poderia ser necessário repensar a própria organização da AT, porque estamos a funcionar com uma estrutura organizacional que é a mesma desde há décadas e hoje já temos uma série de tecnologias à disposição que poderiam ser usadas para tentar otimizar e estão em alguma medida também já a ser usadas, mas estamos aqui numa fase em que, sobretudo devido à falta de recursos humanos, não se consegue dar a resposta necessária.
Para o STI, quais devem ser os pilares de uma reorganização da AT?
Não cabe ao sindicato estabelecer esses pilares. Aquilo que nos parece é que, como está, não está a funcionar de forma eficiente nem para os utentes do nosso serviço, nem para os trabalhadores. E temos esta questão da rutura dos quadros em cima da mesa. E, por outro lado, não obstante esteja a ser feito algum esforço de modernização e de aproveitamento das tecnologias, da digitalização, parece-nos que com as ferramentas como o teletrabalho e a evolução tecnológica, eventualmente há aqui condições para que alguma equipa de trabalho dirigente promova e repense a forma de funcionamento da AT, de maneira que seja mais eficiente no serviço que presta, tendo sempre em conta as condições com que os seus trabalhadores exercem a sua função.
A tendência será para o encerramento de serviços?
O serviço de proximidade, não há dúvida que é necessário e poderá vir a ser sempre necessário. Aquilo que temos que pensar é se faz sentido ter os serviços de Finanças, por exemplo, falando dos serviços locais, com a organização que existe atualmente, porque temos não só essa parte do atendimento, como temos uma série de tarefas, nomeadamente relacionadas com a tramitação processual, que são altamente complexas e que é preciso também tratar. A nível experimental já se começa a tentar ver se se pode agrupar, por exemplo, a cobrança coerciva numa determinada região onde tem mais funcionários. Vamos percebendo que estão a ser feitas algumas tentativas de poder tornar o sistema mais eficiente, com menos recursos humanos, mas também sem os sobrecarregar demasiado. E parece-nos que cabe sobretudo à tutela e à direção-geral criar uma equipa de trabalho, ou o que quer que seja, e pensar nestas questões e apresentar de forma clara também esse projeto. A perceção que temos é que estamos à beira do abismo. Isto gera uma grande desmotivação. Apesar de muitos estarem próximos da aposentação, temos muitas pessoas que têm ainda 15 anos de carreira pela frente, ou 20, e nesta fase não conseguimos perspetivar o que é o futuro, porque ninguém nos fala disso. Só vemos uma organização pesada, com a mesma estrutura de há dez ou 20 anos, sem pessoas e cada vez mais desorganizada, em modo de sobrevivência.
A política de contratação satisfaz as saídas para a reforma?
De todo, não. Nos últimos anos têm saído centenas, e em alguns meses várias centenas de trabalhadores para aposentação. Há muito tempo que não são abertos concursos externos para poderem reforçar e rejuvenescer os quadros. Temos vindo a alertar para isto, porque vemos as equipas a ficarem desfalcadas, os serviços a funcionarem em risco até de poderem fechar e toda a sobrecarga que é gerada àqueles que permanecem no ativo, porque aumenta o trabalho per capita e temos uma média de idades muito avançada. Na função pública, a média de idades já ronda os 48 anos, na AT anda por volta dos 56.
Quando foi o último concurso?
O último concurso externo foi aberto no início de 2022. Em 2023, agora, no início de setembro, entraram 180 pessoas o que, para os milhares que saem, são insuficientes. Em setembro deste ano começaram o período experimental. Portanto, temos a perspetiva de se virem a fazer recrutamentos plurianuais, porque isso já nos foi anunciado como uma intenção que o governo tem de não ficar tantos anos sem recrutar e fazer recrutamentos mais pequenos, mas mais regulares, todos os anos. A questão é que se esteve muito tempo sem avançar para este tipo de recrutamentos e este último que foi anunciado, foram 180 pessoas para os serviços centrais em Lisboa, portanto, nem sequer este recrutamento vai resolver o problema dos serviços locais, por exemplo, onde se sente um desfalque muito grande, e mesmo nos aeroportos e outros serviços. Além disso, demorou imenso tempo todo o processo de recrutamento.
Estão mais concursos programados?
Foi-nos dito que existe essa intenção, não está ainda divulgado ou anunciado formalmente pelo governo e aguardamos por esse anúncio, porque até lá são perspetivas, são intenções que nos podem parecer positivas, já vêm tarde, mas ainda assim mais vale tarde do que nunca. Era esperado que este ano ainda abrisse um primeiro recrutamento, pelo menos, foi aquilo que nos disseram que pretendiam fazer.
De quantas pessoas precisa a AT neste momento?
Não tenho uma estimativa exata, mas mantendo a estrutura de funcionamento da AT que existe atualmente, com todos os serviços de finanças do país, os aeroportos, etc., se calhar duas mil pessoas, para continuarmos a funcionar como estamos a funcionar. Não seriam suficientes, mas admitimos que eventualmente não possam ser recrutadas estas duas mil no imediato. Esse plano que nos foi apresentado, essa intenção de recrutar 200, 300 pessoas por ano nos próximos quatro ou cinco anos, talvez possa criar aqui algum equilíbrio. O nosso receio é que os tempos de recrutamento sejam igualmente elevados.
E qual é o ponto de situação relativamente à regulamentação das carreiras? Houve avanços?
A regulamentação das carreiras esteve três anos parada. O sindicato desenvolveu algumas ações de protesto em 2021, sem avanços significativos no que toca a tudo o que tem a ver com a nossa progressão na carreira. Enfim, praticamente todos os regulamentos ficaram por fazer desde que o diploma entrou em vigor. Em março e abril desenvolvemos várias iniciativas e ações de protesto para chamar a atenção também para esta questão e para o estado em que se trabalha neste momento na AT. E o atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais tomou a iniciativa de realizar reuniões de trabalho conjuntas. Durante o mês de junho, realizaram-se uma série de reuniões para debater e criar ali as linhas bases daqueles que são considerados dossiês prioritários. Chegou-se a algum consenso, não estamos ainda na fase negocial, apenas preparatória, e ficaram de nos apresentar propostas para a regulamentação dos vários diplomas. Até ao momento ainda não chegaram. Portanto, estamos a aguardar.
E qual tem sido o impacto desse atraso na regulamentação? Isso contribui para o desânimo da AT?
Sim, neste momento o desânimo é imenso. Isto não é só de agora, já vem de trás. A política de gestão de recursos humanos não tem em conta, até nas opções gestionárias que são tomadas, a motivação dos trabalhadores. Não há também ainda os serviços de medicina no trabalho, que poderiam eventualmente fazer algum levantamento deste tipo de situações.
Estamos perante muitos esgotamentos?
Muitos. Infelizmente, temos muitas situações de burnout e de doenças cardiovasculares. Esgotamento mesmo com a pressão que as pessoas sentem no seu dia-a-dia. E depois não verem perspetiva de progredirem na carreira ou de verem o seu esforço e a sua dedicação diária recompensada, também não ajuda em absolutamente nada. E, efetivamente, isso é também, na nossa perspetiva, um problema. Poderá ser transversal a toda a administração pública, mas sentimos isso todos os dias. Tudo o que são procedimentos que podem ajudar a progredir na carreira, estamos a falar de procedimentos onde as pessoas têm de se preparar, estudar e fazer provas de conhecimentos, etc… Temos situações de concursos que são anulados, porque se chega à conclusão que afinal eram inúteis, não faziam sentido nos termos do enquadramento legal em vigor, só que, entretanto, as pessoas fizeram provas. Há todo um conjunto de situações complicadas internas que geram uma desmotivação muito grande.
Dos três mil inspetores tributários, apenas cerca de mil estão no terreno. Porquê?
Neste momento, dos 30% que a troika previa, nem 10% estão afetos à inspeção tributária e aduaneira. Porque estão a prestar funções noutras áreas, na justiça tributária e em alguns casos até no atendimento. Tem sido um tapar de buracos para tentar que a casa não vá abaixo.
Está em causa o combate à fraude e à evasão fiscal?
Parece-nos que sim. Tem havido uma aposta muito grande no apoio ao cumprimento voluntário. Portanto, todo este desenvolvimento dos canais alternativos, do centro de atendimento telefónico, do e-Balcão, etc., que nos parece que faz sentido. É bom que se ajude as pessoas a cumprir as suas obrigações, porque temos níveis de iliteracia fiscal muito elevados no país. Mas não nos podemos esquecer que existe uma fatia grande da economia que não está registada e que, segundo estudos recentes, são milhões e milhões de euros, são cerca de 35% do PIB, que circulam na economia paralela e que não são tributados. Portanto, é dinheiro que não entra nos cofres do Estado, porque é a AT que tem os profissionais mais preparados para poderem fazer este trabalho, para desmantelar e detetar este tipo de situações, e está a ser feito com poucos recursos neste momento.
Depois da polémica com a chamada lista VIP, aumentou o controlo do acesso dos funcionários às bases de dados…
Aquilo que nos parece que é muito importante que todas as pessoas percebam é que o acesso às bases de dados faz parte do trabalho e da função de qualquer funcionário, da rotina. De todos. Os trabalhadores, estejam na área do atendimento, da investigação, da inspeção tributária, seja em que área for, não se trabalha na AT sem aceder às bases de dados da AT. O que nos parece é que após essa polémica foram instituídas uma série de regras, nomeadamente de justificação dos acessos, em que cada funcionário para aceder à sua área de trabalho tem de se registar e o rasto de tudo aquilo que ele consultou fica no sistema. E isso deveria ser suficiente para criar e justificar aquilo que cada um faz. Mas não é suficiente e foi criada uma aplicação, que tem sofrido algumas alterações, em que cada funcionário tem de justificar cada acesso, cada número que consulta.
Isso complica o trabalho dos funcionários?
Naturalmente. Deveria ser encontrada uma solução, porque já estão a trabalhar em sobrecarga e com mais esta tarefa que tem de estar a ser feita constantemente, não ajuda. E tem havido situações em que o trabalhador pode ter-se esquecido de justificar um acesso e é logo sujeito a um inquérito para justificar por que motivo acedeu há dois anos à aplicação do património, àquela hora. E isso tem gerado situações muito desagradáveis. E levado também a alguns trabalhadores a fazerem tudo com muito mais calma para não correrem tantos riscos, o que poderá também afetar o próprio desempenho. Este esforço de justificar cada acesso, por vezes, gera nos trabalhadores a sensação de estarem a ser perseguidos.
E há abertura da tutela para mudar alguma coisa nesse campo?
Há cerca de um ano, mais ou menos, chegámos a ter várias reuniões com a direção-geral e com a área da disciplina, no sentido de sensibilizar para isto, até porque os colegas que estão nessa área da disciplina têm uma atitude, não todos, naturalmente, mas tivemos alguns reportes de situações dos trabalhadores estarem a ser alvo desses inquéritos e estarem a ter a sensação que estavam ali a ser investigados, como se tivessem cometido algum tipo de crime. E, efetivamente, a grande maioria – já não me recordo da taxa, mas era muito superior a 90% – destes inquéritos são arquivados, porque se confirma que a pessoa estava a trabalhar, esqueceu-se de fazer aquela justificação daquele acesso. Só que, entretanto, gerou ali toda uma carga de stress, eventualmente desnecessária se houvesse outra forma de controlar e de fazer estes registos – apenas quando há, de facto, indícios de ter havido ali um abuso. Mas daquilo que é a experiência e os dados que existem, as taxas de acesso indevido são muito inferiores, andam ali à volta de 1%, nem isso, portanto, são muito baixas, são situações pontuais que podem ocorrer e que, regra geral, são devidamente penalizadas.
O que é que gostaria de ver na proposta do Orçamento do Estado para 2024?
O STI tem, nos últimos anos, apresentado algumas propostas, não de âmbito estritamente setorial, mas até mais abrangentes, para toda a função pública, que até ao momento ainda não vimos satisfeitas. Uma delas tem a ver com a atualização dos valores das ajudas de custo e transporte, porque em 2010 foram feitos cortes nos valores estipulados. Quem faz serviço externo, nomeadamente quem está a trabalhar na área do combate à fraude e à evasão fiscal no terreno, viu os valores pagos serem alvo de um corte – desde 2010 -, que nunca mais foi reposto e, na nossa perspetiva, neste momento, não chega repor estes cortes, têm que se atualizar os valores, porque, entretanto, houve todo um aumento dos custos com o combustível, com a restauração e com o alojamento. Não faz sentido manter-se os valores que são abonados por quem anda no terreno e utiliza a sua viatura ao serviço do Estado. Por outro lado, há outra proposta que fazemos e que tem a ver com a reposição dos três dias de férias que em 2014 foram retirados à função pública, passou-se dos 25 para os 22 dias. Entendemos que faz todo o sentido voltar a repor estes três dias. Estes são dois exemplos de propostas que temos feito e que se não vierem contempladas no Orçamento, iremos fazer novamente.